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Marcia Telles

Fora de si


Um amor se mede e se legitima pelo tanto de fora de si que exige dos envolvidos. Porém, assim como a felicidade às vezes se revela na ausência, pois quando tristes nos damos conta das ocasiões em que éramos felizes e não sabíamos, existe algo do amor que se explicita pela negatividade. É no discurso da perda, no tipo de dor que só ele é capaz de produzir que descobrimos alguns de seus segredos.

Nas palavras de Martha Medeiros, um amor nos introduz a nós mesmos, mas numa versão até então lacrada, desconhecida. Seu livro: Fora de mim (Objetiva), conta a história de uma separação. Trata-se do fim de um vínculo que abriu para a personagem dimensões de si mesma que aguardavam essa experiência de ser amada para surgir.

Há versões de nós próprios que esperam o amor para surgir, enquanto os amigos acusam aos amantes de terem virado pessoas diferentes, de estarem se adaptando ao parceiro, de perder a autenticidade. Pois amar é mudar a alma de casa, dizia Quintana, eu acrescentaria, de país, de cultura. Descobrimo-nos modificando o paladar, a entonação da voz, o vocabulário, o amor apresenta-nos a uma personagem a princípio estrangeira ao que conhecíamos de nós mesmos. Tudo isso acontece de forma fulminante, quando nos damos conta, estamos adaptados ao ser amado como se tivéssemos nascido em seus braços. Até o passado é servo desse novo amo: amigos, pais, irmãos e por vezes até filhos de um relacionamento anterior serão vistos sob a ótica desse novo vínculo.

Então, por uma circunstância qualquer, uma traição, algo que se quebra, um mal-entendido intransponível, ocorre o que Martha chamou de sua morte em minha vida. Um tipo particular de fim: A morte de um amor, ao contrário, é viva. O rompimento mantém todos respirando: eu, você, a dor, a saudade, a mágoa, o desprezo – tudo segue.


A dor dessa perda, desse luto por um morto que está vivo é dilacerante, funciona como um membro fantasma, como um braço decepado que ainda dói. Porque aquele que partiu leva consigo aquela parte de nós que lhe dizia respeito, como se fossemos um verbo e cada amor uma conjugação, que só ocorre em sua presença. Perder um amor é perder-se, porque encontrá-lo foi transformar-se em algo que sem ele nunca seria. Martha define a perda amorosa como uma vertigem. De fato, é como naqueles sonhos de queda livre, mas antes do momento de acordarmos assustados, constatando que não nos estrebuchamos no chão.


Como em todo luto, o tempo é remédio que permite algum resgate: o náufrago Crusoé construiu seu reino da ressaca, assim, no fim, re-organizamos nossa ilha, ou outro amor.

Fonte: ZHora - 2010

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