Sempre me espanto, nesta época do ano, com a quantidade de pessoas que dizem detestar o Natal. No consultório, entre amigos, nas lojas, ouço gente reclamando contra esta que já foi, unanimidade, “a festa máxima da cristandade”, mas não entendo bem o porquê. Verdade que o transito piora, o dinheiro encolhe e existe a obrigação de comprar presentes. Mas com pouca, muito pouca imaginação é possível inventar presentes baratos; dá até para fazer coisas em casa. Quem disse que presentes de Natal devem ser caros? Quem disse que a festa deve ser transformada em pretexto para ostentação?
Nunca entendi muito bem por que é que nós, terráqueos, é que somos presenteados na comemoração do nascimento do filho de Deus. Mas sendo o que manda a tradição, confesso que acho uma delícia inventar presentes para as pessoas queridas, gosto até mais disso do que de ganhar presentes – o que também tem seus encantos.
Verdade que minha família não faz questão de reunir-se em toda a sua extensão. Deve ser muito chato comemorar – sem entrar no mérito do que se comemora – com gente que você mal conhece, só porque o calendário manda.
Em festas de casamento, por exemplo, convivemos com ramos muito mais afastados da família e isso não nos incomoda. O que é que pesa tanto, na convivência natalina? Deve ser a obrigação de amar essas pessoas. Em festas de casamento, formaturas, batizados, a família extensa se reúne, mas não existe o pressuposto do amor e da intimidade. Cumprimentamos rapidamente parentes, contraparentes de quem mal sabemos o nome, e vamos nos divertir com aqueles com quem temos de fato alguma afinidade. No Natal existe o pressuposto de que todos devem ficar muito juntos, e encontrar prazer nisso.
Também entendo o mal-estar de quem não se dá bem nem com a família próxima; casais à beira da separação, irmãos que não se falam, filhos em guerra com os pais, simulam um armistício para trocar presentes e brindar ao pé da árvore e tal. Quanta hipocrisia, dizem. Pode ser. A não ser que o vinho, as luzes e a excitação das crianças acabem por descontrair o clima e provocar um perdão aqui, uma reconciliação ali: nesse caso, valeu a pena cumprir o protocolo natalino.
Tenho outras duas hipóteses a respeito das já tradicionais broncas contra o Natal. Ha uma desilusão declarada em relação a festa. Parece que as pessoas não perdoam o fato de que a magia da infância terminou. Natal, para as famílias laicas, é uma festa voltada para as crianças. Tudo remete ao mundo infantil: a expectativa dos presentes, as luzes coloridas, as bolas na árvore, o corre-corre dos adultos para aprontar tudo. Acima de tudo, as crianças se encantam com o mito do Papai Noel.
Para os adolescentes criticar a caretice do Natal faz parte do estilo de vida adulta que eles estão tentando adotar. Mais acho graça que gente barbada (ou enrugada), que já não acreditava em Papai Noel há trinta ou quarenta anos, ainda reclame da falsidade da festa de Natal. Parece um ressentimento atrasado contra a antiga decepção. Papai Noel, antes de simbolizar a ânsia de consumo e a histeria comercial que se apoiam sobre sua imagem, representava a fantasia reconfortante e consolada da pura generosidade gratuita. Alguém que, sem ganhar nada com isso passa a vida fabricando brinquedos para distribuir a todas as crianças do mundo na noite 24 de dezembro. Faz pensar em um mundo mais protegido, mais propenso a bondade e mais igualitário também. Um mundo que não existe, sabemos. Mais é triste lembrar disso todos os anos, justamente em presença da velha fantasia abandonada.
A segunda hipótese é que não perdoamos que o Natal tenha se transformado em uma festa profana. Não que as pessoas não gostem das festas profanas – o Carnaval, que há tempos já perdeu a conexão do calendário da igreja Católica, é prova disso. Mas o Natal, cuja tradução mais atual são os 40 minutos de congestionamento para entrar no estacionamento de um Shopping iluminado, ainda não apagou completamente a marca de sua origem: o nascimento de Cristo, o início do novo testamento, segunda chance de salvação que Deus ofereceu aos homens. Mesmo as famílias agnósticas sentem-se em dívida com a tradição cristã. O pretexto de que seja uma festa “da família” nos satisfaz pouco. Sabemos que a redução de sentido da vida social ao âmbito privado é o empobrecimento.
Todos acusam o Natal de ter se transformado em uma orgia consumista. Nas filas do empacotamento de presentes as pessoas se queixam de que a festa já perdeu o seu sentido original. Na ressaca da manhã seguinte, alguns lamentam tanto os excessos quanto o vazio do Natal. As pessoas em geral não querem ser hipócritas. Muito menos cínicas. Sentem-se estúpidas por celebrar o Natal sem saber o que se está celebrando.
Nós, que já estamos há muito tempo órfãos de Deus sofremos por ficar a cada ano mais pobres de rituais e de simbologias. Em todo caso, eu tenho mais facilidade de entrar no “espírito” do Natal do que na alegria obrigatória do Réveillon.
Maria Rita Kehl - Psicanalista - Trechos do texto publicado em 2004.