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O Futebol e a vida

Marcia Telles

Aviso aos leitores: não entendo de futebol. Não tenho direito a dar nenhum palpite técnico a respeito. Não posso nem participar das enquetes de torcedores que escolhem o melhor goleiro ou o melhor zagueiro de um campeonato. Nunca acompanhei um campeonato inteiro a não ser as Copas, não sou capaz de me lembrar de um gol, de um passe, de uma jogada genial. Já me esqueci dos nomes da maioria dos jogadores do time pentacampeão.Mas uma vez ou outra tive o privilégio de ser tocada pela Graça e entender a paixão que o futebol desperta em milhões de brasileiros. Uma vez ou outra - como na final do Brasileiro, domingo passado. Não estou aqui para dizer que Santos e Corinthians jogaram um bolão. Que foi uma partida disputada e/ou equilibrada. Não tenho autoridade: minha perspectiva é totalmente literária. O jogo de domingo passado reforçou minha impressão de que o futebol é o mais apaixonante dos esportes porque é o que mais se parece a uma síntese dramática - às vezes, "trágica" - da vida. Em primeiro lugar, como na vida, existe o tempo e sua tirania. É o limite do tempo que vai determinar o final da partida. No último minuto, um lance pode virar o jogo e inverter o que foi arduamente conquistado nos 90 minutos precedentes. No último minuto uma vitória quase certa pode virar em derrota. Aristóteles escreveu, em sua Ética: o valor de um homem só se escreve no último dia da vida. No futebol, vai valer o placar do minuto final. O time que jogou um bolão com garra pode perder para o outro que ficou na retranca e cavou um pênalti aos 44 minutos. Como na vida o acaso pesa, e muito, no futebol. Um passe mal calculado, por uma diferença de milímetros, pode colocar a bola nos pés do adversário. Uma falta manhosa pode passar despercebida, um gol pode ser injustamente anulado porque o juiz considerou impedimento. Como na vida, estamos nas mãos do acaso e, o que é pior: da precária justiça dos homens. O juiz não tinha ângulo para avaliar o impedimento? Azar. Fica assim mesmo. O jogador que exagerar no protesto ainda pode levar um cartão. Somos vítimas do acaso e também das emoções. Quem não se controlar pode dançar. Pode-se ganhar ou perder um jogo por um triz - e não tem volta. O duro é que não tem volta. Como se sente o jogador que errou uma cobrança de pênalti? Calculou mal o ângulo; chutou para o lado que o goleiro (também ao acaso) escolheu; perdeu o mais fácil dos gols. Sai humilhado, derrotado. Vítima do acaso. Por fim: no futebol, como na vida, nenhum gênio se faz sozinho. Talentos individuais são inegáveis, jogadas individuais podem ser decisivas. Mas como na vida, é preciso que o time se entenda. É preciso que o craque saiba jogar junto com os outros. O futebol é o mais coletivo dos jogos - e também o mais difícil. Um jogo genial pode acabar em zero a zero. Como na vida, o time pode lutar com todas as suas forças - e não fazer nenhum gol!Os adjetivos usados pelos locutores esportivos reforçam as metáforas da vida: uma partida dramática, uma derrota trágica para o time que foi rebaixado. Torcedores quase morrem do coração. Todos os afetos entram em campo: lágrimas, fúrias, e, claro, as maiores alegrias que um homem pode conhecer. Cabe perguntar: por que tanta esperança e desespero? O que significa um time? Que valor tem um título? O que está em jogo, afinal? Símbolos. "Apenas" símbolos. O futebol, mais do que qualquer outro esporte, nos faz ver que nossa humanidade se define toda no campo dos símbolos. Os símbolos são tão vitais quanto o ar que respiramos. O futebol, como algumas formas superiores da arte, firma o nobre pacto entre a eternidade do símbolo e a fugacidade do corpo.


Maria Rita Kelh

Psicanalista

(Artigo publicado em 2002)

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