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  • Marcia Telles

Com palavras também se fere.

Diz-se que muitas mulheres não denunciam as violências físicas sofridas. O mesmo deve acontecer com os homens. Assim, a vergonha da humilhação impede a percepção da violência que ocorre dentro dos lares, embora talvez transpareça às vezes devido aos gritos e às marcas. As instituições encarregadas de zelar pela integridade física dos cidadãos cuidam desses fatos do jeito que dá. Queria agora falar da violência que ocorre intramuros: palavras, em tom alto ou baixo, que — nem precisam ser de baixo calão — vão dissolvendo a auto-estima, gerando inércia e solapando o eu de qualquer um. Uma pergunta sem resposta. Uma ironia suave, porém repetitiva; o persistente frisar de uma disfunção ou tique. Lenta, contida e dificilmente revertida, a marca indelével da violência verbal enfraquece, impede decisões, gera dependência. É caminho certeiro para uma relação desigual, que se instaura no desconforto e não na dor. Se quiséssemos seguir apenas o que se fala por aí, diríamos que se trata da defesa dos frágeis, portanto justificada. Se nas quedas- de-braço perco sempre, se no prestígio social sou menor, refugio-me na força das palavras, cujo efeito retardado aniquila sem estrondo, deixando às vezes uma lágrima envergonhada. Ouvi dizer que, segundo a neurociência, o dom da linguagem é um atributo dominante no feminino. O casal, composto de masculino e feminino, quando mal equilibrado, em crise, apresentaria as duas formas de agressão: a física e a quase imperceptível do silêncio, da ironia, daquela que corrói a auto-estima. Como numerar a freqüência do olhar tristonho da pessoa insatisfeita com o desempenho da outra parte do casal? No começo deste artigo falei em intramuros, porque violência surda e violência física também estão presentes na relação com os filhos. Ironize uma criança e ela se desenvolverá, sem dúvida, um imaturo. A baixa auto-estima impede o crescimento. Algumas peças de teatro e de literatura descrevem as relações mal equilibradas, nas quais a violência mútua nunca chega à luta: usam-se armas diferentes, que impedem o confronto. Como resultado temos portas batidas, objetos jogados, tapas, pontapés, arranhões, socos, beliscões que jamais atingem o olhar desolado, a dizer: não tem jeito! Como há anos o atingido capta a mensagem do quanto decepciona, de como não consegue e jamais satisfará, ele vai jogar a força física que nunca chega ao alvo porque não há alvo. Como sabemos, quem grita e bate perde a razão. De novo, após a demonstração de força, recaímos no poço fundo da auto-estima perdida. Sem saída? Não. O que é preciso é desviar a atenção da violência para o que destruiu, pois onde há um ser humilhado, uma auto-estima rebaixada, aconteceu violência. Nas relações viciadas, entre forças diferentes que se violentam, encontramos longos históricos visíveis de agressão pública. A outra, se percebida e descrita, refugia-se nos consultórios de especialistas da alma humana. Atente para o que vai sendo destruído, e com quais instrumentos: aí você achará flechas cegas, porém anestesiantes, nem por isso menos fatais. A dissolução de casais é dolorosa, mas já deixou de ser tabu. Não existe razão para perpetuar relações mórbidas, intatas. Mas ainda o casamento continua sendo o melhor jeito de se viver. Que o digam os terapeutas de casal e de família. A esses cabe decifrar quem usa quais armas, pesquisar a razão das agressões mútuas e, afinal, detectar o que há para ser dito e não consegue ser expresso. O terapeuta reestrutura as mensagens difíceis de captar. Percebe o que a violência pretende manifestar, e o que o silêncio, o pouco-caso, a ironia estão contando a respeito da situação. Anna Veronica Mautner,

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