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Marcia Telles

Pedaço de mim


Poderíamos dizer que há “relações fantasma”, quando dói toda uma parte de nós, que dizia respeito àquele que se amou.


Por que os amores fracassados, as dores de corno, os abandonos, são tão prolíficos na canção, na poesia, tanto quanto ou, talvez, tanto mais do que a paixão? Porque o fim do amor é traumático. Ex-amantes são pedaços perdidos de nós, metades afastadas de nós. Levam consigo um destino que recusou-se a continuar, partem carregando em seus braços aqueles que deixamos de ser, aqueles que sonhamos juntos em tornar-nos um.


Ao rever o passado tendemos a sentir-nos trapaceados pelos próprios sentimentos. Como foi que me iludi tanto, como foi que escolhi tão mal? Repentinamente aquele que se desejou e amou torna-se um estranho e suspeitamos que o amor não passe de propaganda enganosa, um feitiço que uma vez dissipado revela alguém que nada vale aos nosso olhos.


Não creio que nos equivoquemos tanto. Por vezes no fim da história não se vive feliz nem para sempre: a gente se perde, ou mesmo escolhe caminhos que tornam-se incompatíveis, mas por certo alguma estrada, boa ou ruim, se percorreu juntos. Aquele a quem amamos não é uma pessoa imutável, ele também é resultado do casal que formou. Contemplá-lo, agora afastado de nós, é também ver o resultado disso. Se após o fim encontrarmos duas pessoas idênticas ao que eram, nesse caso a suspeita do engano se confirma: não houve relação, apenas ilusão.


Mesmo complicados os amores foram escolhas e deixam marcas no destino que não podem nem devem ser apagadas. Há músicas, cheiros, fotografias, gestos íntimos, cenários, que são oriundos daquele laço. Tudo o que vivemos intensamente nos modifica, portanto, somos também filhos dos amores que tivemos e deles ficamos órfãos quando acabam.


Um membro amputado deixa no corpo uma sensação de existência, há quem sinta dor num braço ou num pé que já não mais possui. Esses são chamados de “membros fantasma”. Poderíamos dizer que há “relações fantasma”, quando dói toda uma parte de nós, que dizia respeito àquele que se amou.

Pior do que suportar a perda daquilo que se sonhou e viveu juntos é encontrar no lugar do amor que se teve um buraco negro que nos traga. Já conheci esse desespero, já vi um olhar vazio aparecer num rosto em que antes me reconhecia, por isso sei que todo divórcio é de si mesmo. A sensação que o encontro com um ex-amor recente causa é de cair num abismo, é como se o corpo se dissolvesse.


Por um tempo, seremos pessoas fantasma, até que um dia, passando por um espelho, descobrimos que nossa imagem voltou a estar lá. Vampiros não se enxergam porque perderam todo o sangue próprio, precisam do alheio, é assim que nos sentimos quando separados: esvaziados. Aos poucos, felizmente a vida começa a pulsar novamente e podemos voltar a refletir uma imagem. Só que agora marcada pelos traços daquele olhar que uma vez escolhemos para nos refletir. Acabou, mas existiu









Fonte: zero hora

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