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Marcia Telles

Maconha deveria ser legal, mas é só um hábito besta


A maconha é uma droga que conseguiu um status incomum. Quem tem a cabeça muito quadrada e segue acreditando que droga ilícita é ilícita e pronto, está cego para a realidade. A maconha ainda não foi totalmente legalizada, mas seu uso é, em termos práticos e culturais, um fenômeno mainstream de aceitação crescente.

Existe um bom argumento a favor da legalização. Ele é bem preciso e delimitado: legalizar é ir na direção contrária à catastrófica "guerra às drogas". É desistir de uma política truculenta que gera violência e opressão sem resolver nada. Só que um movimento como a legalização depende muito mais de condições culturais favoráveis que de bons argumentos. Depende de propagar crenças como a banalização e a romantização do consumo.


Eu sou a favor de que seres humanos adultos (ênfase em adultos) sejam livres para fazer qualquer bobagem que lhes aprouver, desde que não causem dano a outros. Então, vejo a legalização como um processo óbvio. No entanto, não se engane: fumar maconha é uma tremenda bobagem.


Maconha não é banal. Faz mal. A associação entre maconha e psicose, por exemplo, é muito bem estabelecida, apesar de alguns "especialistas" seguirem negando as evidências. Eu não gosto de ficar citando mil referências em artigos de opinião, mas quem quiser pode dar uma olhada neste especial da Frontiers - uma boa revista de acesso aberto - que reúne excelentes artigos sobre o tema. O problema é que as discussões se perdem em detalhes que só servem para confundir, permitindo que cada um siga acreditando naquilo que lhe convém". Uns afirmam: maconha "causa esquizofrenia"; legalizar terá o efeito de criar uma "fábrica de esquizofrênicos". Outros correm a apontar que não se pode provar essa relação causal, e que os quadros psicóticos induzidos são apenas transitórios. Essa discussão é fundamental para os cientistas que investigam o tema. Mas é uma cortina de fumaça para a sociedade interessada nas conclusões práticas.


Ninguém nega que existem quadros psicóticos induzidos pelo uso de maconha. São psicoses esquizofreniformes (similares à esquizofrenia), por vezes maniformes (similares aos surtos de mania do transtorno afetivo bipolar), ou "polimórficas" - ou seja, difíceis de caracterizar como uma ou outra. E são psicoses que podem se tornar persistentes, mantendo sintomas mesmo após a interrupção do uso, levando a uma deterioração progressiva. A distinção entre essas psicoses induzidas e a esquizofrenia é importante para os especialistas, mas a conclusão prática é simples e óbvia: há risco.

A associação entre maconha e a esquizofrenia, propriamente dita, também já foi demonstrada, mas pode não ser de causalidade (esquizofrênicos podem ser mais propensos a se tornarem usuários, e não os usuários a se tornarem esquizofrênicos).


Também é correto dizer que a relação causal entre o uso da maconha e esses quadros psicóticos não pode ser absolutamente confirmada. Porque relação causal absoluta é muito difícil de se estabelecer. Veja o que acontece atualmente com a Zica e a microcefalia. Mas a correlação estatística entre maconha e psicose é bem evidente. É claro que a maconha não vai causar psicose em todo mundo. Mas seu uso está associado a maior risco e, em pacientes predispostos, inclusive em esquizofrênicos que ainda não desenvolveram a doença, o uso desencadeia surtos e piora o prognóstico.

Psicose pode ser muito assustador, mas não é o único problema. Transtornos relacionados ao uso abusivo da maconha - como depressão, ansiedade, alterações em memória e concentração - têm se tornado queixas comuns na prática psiquiátrica. O uso precoce, em crianças e adolescentes, foi associado a alterações cerebrais e prejuízos no funcionamento cognitivo. Esse tipo de correlação tem de ser comprovada empiricamente para ter credibilidade científica. Mas, cá entre nós, não é óbvio?


Além dessa campanha de banalização também há a romantização do uso. É um fenômeno parecido com a glamourização do tabaco, que foi tão bem descontruída nas últimas décadas. A imagem da maconha nunca foi associada ao glamour do cigarro, mas é romantizada de outras formas: é tida como uma contravenção leve que implica uma rebeldia positiva, sinal de não conformidade com o "sistema", de uma "mente aberta". Associa-se a pessoas descoladas, de bem com a vida, que preferem a paz e a aceitação ao conflito e à cobrança. Liberta das expectativas de produtividade e desempenho do mundo moderno. Estreita laços de amizade e cumplicidade. Aprecia-se mais a música, a natureza. É progressista, libertadora e estimula a criatividade.


Um monte de bobagens. Propaganda óbvia. Fumar maconha é só fumar maconha, tragar fumaça de uma erva com substâncias psicoativas e ficar dando risada com os amigos. Pode ser bom? Claro que pode. É uma diversão leve e casual para muita gente. Para a maioria dos usuários, provavelmente. Mas toda a romantização, o movimento social, as músicas, as passeatas, o "vestir a camisa" de um hábito tão besta alimenta (e é alimentado por) uma onda cultural que arrasta milhares de pessoas a um uso pesado, abusivo, com diversos efeitos deletérios. Não só efeitos físicos ou psicológicos, como psicose ou depressão, mas também sociais e existenciais. São as pessoas cujas vidas se apequenam, se estreitam, limitadas por um hábito, um vício, que responde todas as questões, nubla todas as angústias e os afastam das vivências humanas mais significativas.


É claro que a maioria dos usuários, enquanto vomitam uma retórica romântica defendendo seu direito ao baseado, não olham para esses casos. Desconsideram. Atribuem a um problema pessoal, nada a ver com a maconha. Quem trabalha com saúde mental é que enxerga melhor a rebarba da festa.

Eu digo o mesmo sobre o álcool. Quando você trabalha com pacientes alcoólatras, e você vê o desastre que o uso é na vida deles, e acompanha o esforço para tentar parar, a enorme dificuldade de não consumir algo que é estreitamente ligado à socialização e alegria, fica evidente o poder avassalador dessa propaganda. Um alcoólatra não consegue ir a um evento social sem sentir que tem de beber. E, hoje, um adolescente raramente consegue ir a uma festa, um show ou uma viagem sem sentir que tem de dar um pega. A maconha é onipresente.

Que gostoso que é isso para a turma que usa com moderação. Que armadilha para os dependentes.


A maconha legalizada vai perder seu caráter contraventor. Será uma perda de força do seu ideal romântico. Mas entrará em ação a máquina de propaganda das grandes empresas que virão a dominar esse mercado. Vai virar um produto, uma indústria, gerar empregos e impostos, um item de consumo. É bom. Quem sabe, assim, poderemos passar pelo mesmo processo que mudou a imagem do cigarro de "sofisticado" para "veneno". Conseguiremos, quem sabe, ultrapassar o romantismo e enxergar a maconha como ela realmente é: só um hábito besta.



Guilherme Spadini - Psiquiatra e Psicoterapeuta formado pela USP

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