Um poema de Carlos Drummond de Andrade, Morte no Avião, descreve o último dia de um homem marcado para morrer num desastre aéreo: "Acordo para a morte. / Barbeio-me, visto-me, calço-me. (...) Tudo funciona como sempre. / Saio para a rua. Vou morrer". O narrador do poema tem plena consciência de que dali a pouco embarcará para a morte, e no entanto não deixa de cumprir os pequenos rituais da vida: "Visito o banco. Para que / esse dinheiro azul se, algumas horas / mais, vem a polícia retirá-lo / do que foi meu peito e está aberto?". E assim prossegue, ritual por ritual, miúdo gesto cotidiano por miúdo gesto cotidiano: "Tenho pressa. Compro um jornal. É pressa / embora vá morrer. (...) Comprometo-me ao extremo, combino encontros / a que nunca irei, pronuncio palavras vãs, / minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá". Enfim, chega a hora: "Subo uma escada. Curvo-me. Penetro / no interior da morte". A hora fatal se aproxima. O avião decola. Mais alguns minutos, e então... "Golpe vibrado no ar, lâmina de vento / no pescoço, raio / choque, estrondo, fulguração / rolamos pulverizados / caio verticalmente e me transformo em notícia".
Madri, 11 de março de 2004. (Exatos dois anos e meio depois de Nova York, 11 de setembro de 2001.) Confrontada com a realidade, a fantasia do poeta revela-se poderosamente verdadeira. É fruto da fantasia imaginar alguém que tenha cabal consciência de que dali a pouco embarcará para a morte. Mas, por trás da fantasia, esconde-se a poderosa verdade de quão distraídos nos arrastamos em direção a ela. No poema, a morte naquele dia mesmo, no avião, funciona como metáfora para a morte em geral. Os seres humanos sabem que vão morrer. Têm plena consciência disso. E no entanto vão tocando como se não tivessem um encontro marcado com a morte – e se vestem, calçam-se, vão ao banco, compram o jornal. Chegam a dizer "até amanhã" quando amanhã não há.
Se é assim em geral, é muito mais assim quando a morte espera de tocaia, no mais inesperado dos dias, como num atentado terrorista. Esbocemos um exercício de ficção. Imaginemos os pensamentos, os diálogos, os gestos e os cacoetes da gente que circulava nos trens ou nas estações de Madri, na quinta-feira, pouco antes da tragédia. Um dormitava ainda, naquela hora matinal. No banco ao lado, outro lia o jornal. Imaginemos uma jovem que ia, cheia de apreensão, para o primeiro dia no primeiro emprego. A seu lado, um engenheiro rascunhava mentalmente o cálculo de que o tinham incumbido para aquele dia, mas tinha a atenção desviada por dois vizinhos que disputavam quem teria se saído melhor, Ronaldo ou Beckham, no último jogo do Real Madrid.
Uma senhora (continuemos sempre a imaginar, apenas imaginar, mas com a certeza de que, se não foi exatamente assim, algo muito parecido ocorria) se dirigia ao laboratório onde receberia o exame indicando que estava com câncer. Outra coçava a perna. Outra matava a sede levando aos lábios a garrafa de água mineral. Um moço levantou-se do banco para descer na estação que se avizinhava e disse ao companheiro que seguiria viagem: "Hasta mañana!". Hasta mañana! Inadvertida e mecanicamente, ele pronunciou as palavras mais insensatas possíveis, naquela hora e local. No momento seguinte, como no avião do poeta, "choque, estrondo, fulguração". E toda aquela teia de pequenos movimentos, alegrias, tristezas, aflições e arrebatamentos a que chamamos vida pulveriza-se no ar e desfaz-se em barulho, fumaça e horror.
Seguem-se os comentários sobre as trapaças do acaso. Há o caso (podemos ter certeza, pois há sempre esse caso) daquele que não devia ter embarcado naquele trem, mas mudou de idéia e... azar. Inversamente, outro habitualmente embarcava àquela hora, mas naquele dia dormiu demais e... sorte. Uma, desesperada, procurava saber do marido, que sempre viajava naquele trem – mas naquele dia ele passou antes na casa da amante, e escapou. Outra nem de leve supôs que o marido pudesse estar entre as vítimas, mas ele arrumara uma amante na véspera e decidira visitá-la. Despedaçou-se junto com o ramalhete que levava nas mãos.
A tragédia interrompe a orquestração da vida como um maestro ensandecido que resolvesse atirar nos músicos. Tal papel é desde sempre cumprido pelas tragédias naturais, como os terremotos, e pelos grandes acidentes, como os naufrágios de navios e quedas de aviões. Mas estamos no século XXI, e o terrorismo arrogou-se exercê-lo. Às vezes o terrorismo se volta contra alvos específicos e compreensíveis – o chefe da facção contrária, alguém a serviço dele. Outras, como nas tragédias naturais, ataca cegamente. Como os alvos específicos se encontram bem protegidos, opta por atacar quem não tem nada com isso. E nesse caso, para causar impacto, precisa atacar maciçamente e fazer muitas mortes. Assim foi em Nova York, 11 de setembro, e em Madri, 11 de março. O terrorismo roubou do diabo a chave do inferno e deleita-se em transformar este mundo num monturo pestilento.
Roberto Pompeu de Toledo - Ensaio 2004